Da série: Boca do Acre , a “Macondo” dos Elmaleh
Mil famílias imigrantes ao longo de 200 anos . Jovens marroquinos e suas famílias espalhadas ao longo da imensa calha do Rio Amazonas, do porto Belém à Iquitos no Peru, deixando as marcas de sua presença em mais de 3 dezenas de cidades e pequenos vilarejos, distribuídos pelos estados do Pará, Amazonas, Acre, Amapá e Rondônia.
Seus rastros estão registrados em 4 comunidades remanescentes,com suas quase 700 famílias , nas centenas de milhares de descentes diretos e indiretos - os chamados “hebraicos”- elos partidos do corpo nuclear que os originou pela assimilação e miscigenação. Estão também em sinagogas, clubes, instituições comunitárias, cemitérios, casas comercias, residenciais e indústrias, na preservação e na prática de sua religião e tradições milenares, principalmente na memória de seus descendentes e nas suas histórias pitorescas sem fim.
Pinço aqui um minúsculo elo deste mosaico, para narrar uma pequena e singela passagem desta quase mitológica presença, duas vezes centenária, dos judeus no coração da floresta.
Somos parte de “los nuestros”, o ramo Elmaleh deste imenso elo, que das montanhas da antiga Judéia , por sorte da história, aportou por longos séculos em terras de Ibéria, a nossa mítica Sefarad, onde construímos uma multi secular cultura da qual herdamos um ranço de orgulho quase desmedido pelas nossas coisas, que beira muitas vezes a algo próximo a uma aparente arrogância, onde chegamos a nos distinguir muitas vezes como “Sefatá”( sefaradi taor - o sefaradí puro, legítimo.).
Se bem que muitas vezes em nosso caso particular - não saberia bem explicar com exatidão o por que – também somos surpreendidos por um quê de simplicidade e modéstia quase austera , certamente herança do nosso querido pai e ele do seu... Nestas horas me lembro dos deliciosos personagens de Albert Cohem, os seus maravilhosos “Valorosos”, figuras do seu universo sefaradí realista fantástico, que a ficção daquele autor localiza nas ilhas greco-mediterrâneas. Eles como nós os Elmaleh e todos “los nuestros” da Amazônia, frutos da mesma sorte – o exílio de Sefarad...
Aqueles na ilha de Corfú e nós, por uma razão(?) que carece uma longa explicação – uma outra história dentro desta - viemos a ser a única família judia de toda a pequena e longínqua Bôca do Acre, cidade amazonense, nos confins do estado, já na fronteira com o Acre.
“Nossa Macondo”, palco do presente causo que a seguir lhes narrarei, era e ainda não se distanciou de ser, um pequeno vilarejo, com algumas centenas de habitantes, quando por lá vim ao mundo, naquele ano de 1958.
UM MENINO JESUS PERDIDO POR BÔCA DO ACRE
Até hoje é um mistério para mim, entender por que meu pai foi parar num pequeno povoado, cravado no entroncamento entre os rios Acre e Purus, já na fronteira do Amazonas com o Acre, mil quilômetros distante da capital Manaus, sua cidade natal. Eu disse “para mim”, mas para ele e para outros milhares de judeus amazônicos, a razão era natural e lógica: o trabalho e a luta pelo sustento. O fato é que foi o que se deu - foi lá que nasci e vivi meus primeiros 4 anos. Primogênito de quatro filhos homens, eu era o xodó da minha jovem mãe, nossa querida “Vidinha”. Paparicado ao extremo, bebê gordinho e saudável, pele clarinha, olhos verdes e cabelos louros cacheados:
“Vidinha ele parece um anjinho barroco” diziam as amigas da mamãe, a quem ela implorava que não fizessem tal afirmação diante de meu pai, que como judeu tradicional e conservador, jamais iria aceitar ver seu filho com nome de profeta, ser comparado a um anjo, coisa em geral, relacionada com as imagens sacras cristãs... “Mas que mal há nisso, Vidinha, ele parece mesmo...” insistiam elas.
Naquele final dos anos 50, quando eu nasci, minha “Macondo” era uma antiga aldeia indígena, habitada por alguns milhares de caboclos, índios, nordestinos e seus descendentes, que foram ali parar na época áurea do Ciclo da Borracha e da 2ª Campanha da Borracha, para trabalhar nos seringais da região, e alguns missionários cristãos europeus. Em resumo, gente loura e de pele e olhos claros como eu e meu pai eram raridade na cidade.
A princípio, esta teria sido a razão maior do que se deu com a proximidade do Natal de 1959, quando eu era apenas um bebê. Mas há os que digam que o ocorrido se deu, principalmente, por questões políticas e comerciais, e até mesmo religiosas. Onde estaria a verdade? Eu mesmo, não possuo elementos para saber, já que apesar de protagonista do ocorrido, meu pouco tempo de vida não me permitiu nenhum registro de memória, e me vi obrigado a ficar com o ônus da dúvida...Há também uma quarta possível explicação, mas esta me parece muito intrigante e está mais no âmbito do metafísíco do que do real...Mas vamos aos fatos.
Meus pais , recém casados, costumavam volta e meia sair de viagem com nosso barco, o “Estrela”, em geral à Rio Branco, para papai tratar de negócios ou irem de visita a amigos ou simplesmente à passeio. Uma destas viagens se deu próximo ao Natal e eu fiquei aos cuidados de uma das amigas de mamãe, Socorro.
Na igrejinha da cidade já estavam finalizando os preparativos para a festa natalina e as beatas davam trato à montagem do presépio da paróquia local, para a festa que ocorreria no dia seguinte.
Naquela manhã eu e Socorro tivemos a honra de receber a visita de uma ilustre comitiva enviada pelo pároco, com um nobre objetivo e um singelo convite: que eu fosse o menino Jesus do presépio naquele ano.
As crônicas da “Vidinha” registram que eu realmente fiz o papel para o qual fui convidado e que a ira de meu amado pai z”l, quando ficou sabendo do ocorrido, subiu às alturas e desceu inúmeras vezes e que ele bradava inutilmente quase em prantos: “ Meu Rebi Shimon Bar Iochai, por que logo meu filho?!”
Inútil foi a busca pelos culpados, pois o fato já se havia dado. Passada a ira, meu pai resolveu computar o ocorrido na conta da vingança e da inveja daquela gente.
Anos após, quando eu já havia ouvido tal história inúmeras vezes e ria dela como quem escuta uma boa piada, ocorreu que estando de viagem à Tiradentes no feriado da Semana Santa com amigos, assistia aos preparativos de uma encenação do "Martírio" na porta de uma igreja, quando uma das organizadoras,se dirigiu a mim e me fez um convite surpreendente;
“ Você. com estes cabelos cacheados de anjo barroco, não aceitaria fazer o papel de Jesus"?...
Shalom!
ResponderExcluirImpossível ler sem rir...as histórias da família Helmaleh são realmente incríveis. Já estou aguardando a próxima!
Abraços, Dina Nogueira.