NUM TRIBUTO-RETRIBUIÇÃO À COMUNIDADE JUDAICA DA AMAZÔNIA.
por Lucia de Olivera Mendana - (Ganhadora do Prêmio Samuel Benchimol, com o trabalho: ‘A Presença Judaica na Amazônia à Luz do Livre-Arbítrio’)
- ‘Você não imagina quantos leões teve de vencer para chegar aqui...’
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David Salgado, diretor-fundador do Amazônia Judaica e Lucia de Oliveira Mendana, ganhadora do Prêmio Samuel Benchimol 2010, na categoria "200 Anos da Presença Judaica na Amazônia" |
Eis o que eu ouvi de David Salgado, na noite de 18 de Novembro, quando fui recebida pela família Benchimol, no auditório da Biblioteca Samuel Benchimol, no prédio central da rede de Lojas Bemol, enquanto vivia a expectativa de ser aceita e acolhida pela ‘Mãe de Deus’, significado de Manaus – variação do termo ‘Manaós’ – representantes da raça indígena, que ocupavam o local onde a cidade foi erguida.
Aquelas palavras inesperadas foram ditas, depois de um desabafo repentino, meu, sobre os obstáculos seguidos, que eu havia experimentado, antes de seguir viagem, para receber o prêmio que me fora concedido pelo trabalho, de minha autoria, com foco no livre-arbítrio dos judeus que vieram para a Amazônia, há 200 anos, e que protagonizaram, com essa ‘escolha’, o início da formação da atual comunidade judaica.
... os leões foram muitos, mas você tinha que estar aqui, tinha de participar de tudo isso... – David disse depois, olhando à volta, com seu olhar sereno, como se suas palavras encerrassem uma ‘mensagem maior’, que eu deveria compreender. E, de fato, compreendi.
- Seu sobrenome é apenas ‘Oliveira’ ou ‘de Oliveira’? – ele me perguntou, em seguida, como se estivesse sendo levado pela própria percepção interior.
- ‘de Oliveira’ – eu respondi, de imediato, enquanto folheava o exemplar comemorativo da Revista ‘Amazônia Judaica’, que tinha acabado de receber dele. A mesma, aliás, que me inspirou, assim como as palavras que ele me dizia, a escrever o que está aqui.
- Então, use o seu nome judaico completo, como deve ser. – ele disse, de forma categórica, evidenciando o fato de que eu devia a mim mesma, e às minhas origens, fazer essa ‘opção justa’.
Tinha sido, sem dúvida uma noite gratificante, como poucas, capaz de me levar a dominar mais um leão: o pânico que sentia, a cada vez que precisava falar em público. A ocasião e os meus anfitriões, porém, mereciam que eu enfrentasse o que tanto temia, mas que precisava ser enfrentado. ‘Onde existe medo, falta fé. Não se pode servir a dois senhores. É preciso escolher entre ambos... – eu pensava, consciente do que havia aprendido e de que tinha de fazer a ‘escolha certa’: a de dar liberdade às palavras, me libertando através delas. A verdade é que há muito não me sentia tão bem, tão em casa, como se estivesse entre os meus. Davis Benzecry, Presidente do CIAM, foi outro grande responsável por isso, ao repetir em seu discurso, durante a solenidade de entrega do Prêmio, no dia 19, uma das argumentações sobre o livre-arbítrio, usadas por mim, no meu trabalho. Essa escolha, tão gentil, bem pode ter levado à reflexão sobre o fato de uma monografia ter sido agraciada entre trabalhos pertencentes a outras categorias, consideradas, por alguns, como sendo de maior valia. E, inclusive, à própria reflexão sobre a extrema importância de se ‘decidir valorizar’ – e não mais banalizar e discriminar – a contribuição do potencial judaico a este país. Eu me lembrei, então, de que os gêneros poesia e romance eram igualmente discriminados, mas não deixavam de persistir na Literatura, e fazer valer o seu valor. Assim como vinha fazendo o povo judaico, persistentemente, há anos.
A última noite, naquela terra em que eu pisava pela primeira vez, foi feita de descontração e simplicidade, na Hebraica, durante um jantar – feito de pratos e sabores marroquinos especialíssimos - em homenagem ao Embaixador de Israel Guiora Becher e a toda a Comitiva da CONIB, - entidade mater do judaísmo no Brasil -, presente na Convenção anual que estava sendo realizada, em solo manauara, pelos 200 anos da presença judaica nas terras amazônicas. Ao final, durante a apresentação de danças do ritual indígena, exibidas pelo eletrizante grupo regional ‘Andira’, pude ver que aqueles judeus, que haviam me recebido no seu meio, davam exemplos de sua própria união, ‘escolhendo dançar juntos’, como se, assim, unidos, lado a lado, promovessem um permanente e necessário encontro entre eles. Exatamente como acontecia ininterruptamente no ‘encontro das águas’, testemunhado por mim, depois que me deixei levar pelos segredos dos rios, para conhecer, de perto, a exuberante Natureza local, tão defendida por Samuel Benchimol e uma de minhas maiores paixões. Aquele fenômeno, a olhos vistos, não hesitava em dar lições de desprendimento e mútua cooperação, graças ao Negro e ao Solimões, que faziam rigorosamente a sua parte, até formar o Amazonas, o rio maior, que, por suas fabulosas características, bem merecia ser chamado de rio-mar.
Era justamente assim que aquele grupo hebraico se deixava levar, naquele palco, em meio à música, como se, dessa forma, revelasse a sua alma, numa espécie de celebração às suas origens, à sua crença, às suas vidas. E, muito particularmente, ao seu livre-arbítrio. Espectadora atenta, curiosamente eu me sentia liberta da timidez que me acompanhava desde criança, à vontade entre aqueles que me recebiam como se eu fosse um deles. Era como se - por influência de cada brasileiro-judeu, ali presente, e do meu sobrenome ‘de Oliveira’ - enfatizado por David Salgado - eu celebrasse, também, as minhas próprias raízes judaicas, firmes e profundas. Tanto quanto as raízes da imponente seringueira, - a árvore abençoada e provedora, que havia atraído, com sua valiosa matéria-prima, os jovens judeus marroquinos, a tomar a ‘decisão corajosa’ de se estabelecer no então desconhecido cenário amazônico, perseguindo seu direito humano de conquistar uma vida melhor.
Essa decisão, nada fácil, tornou possível a existência de Samuel Benchimol, e dos seus, de cada um daqueles, enfim, que surgiam como produtos dos seus ancestrais. Todos eles, significando ‘gente que sabia fazer diferença como gente’. E, apenas isso, era o que mais importava.
Só me resta agradecer por tudo que Benchimol me inspirou e proporcionou. Como profissional e, muito especialmente, como o ser humano que ele ‘escolheu ser’.
- Continue a fazer coisas boas e você vai ganhar muito mais... – afirmou Ilko Minev, em resposta ao meu reconhecimento pelo muito que eles me haviam me dado, em tão pouco tempo, observado pelos olhos azuis e profundos de Nora, sua maior parceira, e uma das maiores conquistas do Professor Benchimol, assim como o seu irmão, Jaime. As palavras dele – ditas de forma espontânea, sincera, pareciam soar como retribuição à espontaneidade e sinceridade, sentidas e usadas por mim, em cada palavra do trabalho que eu criara. Pareciam, no entanto, conter algo mais: uma espécie de retratação da vida, a mim, que vinha, há tempos, tentando ‘vencer leões ferozes, ameaçadores’, em forma de obstáculos e mais obstáculos. Todos eles, certamente ‘transponíveis’ - ou, ao menos, contornáveis -, se cada um de nós - judeu ou não - ‘escolhesse ter em mente que fora criado à imagem e semelhança da perfeição divina, que, em si mesma, encerrava a esperança de obter a vitória, a partir da decisão de ‘ser, ousar, fazer’. Nos moldes da razão, mas sem jamais perder de vista a emoção e o conceito de humanismo. Sem qualquer espaço, enfim, para discriminações ou preconceitos inaceitáveis. O prêmio que eu havia recebido comprovava essas verdades. Afinal, ele representava uma conquista, que esvaziava de poder, um a um, os leões, imaginários ou não, que vinham me cercando. Só lamentava não poder ser abraçada por meu pai, jornalista e advogado defensor dos direitos humanos, e pelo próprio Samuel Benchimol, defensor maior dos direitos ambientais, que haviam se ausentado daqui, depois de cumprir, com mérito, o ‘tempo de vida de sua comunicação’. Esse tempo valioso, concedido a cada um de nós, para dizer o que precisa ser dito. Fazer o que precisa ser feito. Mais e melhor até do que esperam de nós.
Definitivamente, seria impossível esquecer essa experiência tão rica, em tudo e por tudo, judaica. As palavras de Benchimol vieram, então, à minha mente:
- ‘Se mais não fiz para esta Amazônia, ‘Um Pouco-Antes e Além-Depois’, terá sido por falta de suficiente engenho e arte, devido às minhas limitações acadêmicas e profissionais’. Samuel Benchimol (Manaus 1924 - 2002).
Tendo ‘escolhido ser eterna aprendiz desse homem inspirador’, e de seu conhecimento, eu ouso repetir as palavras dele, à minha maneira:
- Se mais não fiz, no trabalho que criei, foi por não ter presenciado, antes, ao vivo, o livre-arbítrio judeu, em toda a sua expressão e dimensão, como tive a oportunidade de fazer, graças à família Benchimol, e ao Prêmio que recebi, e que compartilho, aqui, agora, com cada família judaica da Amazônia, que vem deixando suas marcas nessas terras, enfrentando os seus próprios leões, o que exige a escolha abnegada de ‘usar a fé’, ‘acreditar em si mesmo e no próprio poder interior’.
A todos vocês, portanto, a minha admiração, e o meu mais sincero e fraterno ‘Mazel Tov’!