quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Artigo conta a história do renascimento do judaísmo na Espanha atual

O renascimento das comunidades judaicas na Espanha após 1945
 Hélio Daniel Cordeiro


Por lei de 17 de julho de 1945 foi promulgado o Fuero de los Españoles, primeira norma constitucional do franquismo que regulou o regime das confissões ou comunidades religiosas não-católicas - entre elas, a judia -, como norma que passou a nível de Lei Fundamental da nação, depois do referendum de 6 de julho de 1947.

O cardeal primaz da Espanha, Pla y Deniel, manifestou a respeito que judeus e protestantes eram livres para exercer seu culto privadamente, pois o Foro dos Espanhóis era "uma espécie de ação amistosa aos estrangeiros que residiam na Espanha." A prática pública, todavia, ficava proibida.

Este ato legal criou uma nova e especial situação. Desde o final da guerra civil até a promulgação do Foro dos Espanhóis, a comunidade judaica na Espanha sofria um vazio normativo que a impedia inclusive de exercer o simples culto organizado ou privado. A Espanha passava de uma confissionalidade doutrinal e excludente, de unidade religiosa na fé católica, a um regime de mera tolerância - não liberal - de outros cultos não-católicos.

O influente jornal inglês Jewish Chronicle arremeteu contra a Espanha e assinalou que "nem sequer a Rússia soviética impôs semelhantes restrições à prática religiosa."

O Foro dos Espanhóis constituiu o início de um novo período da vida judia na Espanha. Em 23 de outubro de 1945, Jacques Danon e Samuel Maytek, em suas condições de vice-presidente da comunidade judaica de Barcelona e responsável pela Chevra Kadisha local, respectivamente, solicitaram ao governador civil, Bartolomé Barba, autorização para "continuar o livre desenvolvimento de suas atividades, de acordo com as recentes disposições da Superioridade."

Diante da negativa do governador, Fortunato Benarroch, presidente da comunidade dos judeus de Ciudad Condal, expôs a contrariedade a Isaac Weissman, delegado em Lisboa do Congresso Mundial Judaico para a Espanha e Portugal. Weissman pediu a intervenção de seu amigo Nicolás Franco, embaixador em Portugal e irmão do chefe de Estado espanhol, que em seu regresso de uma viagem a Madri, em 6 de dezembro de 1945, lhe comunicou que depois de haver efetuado diversas gestões junto ao Ministério do Governo, não existia inconveniente algum em que os judeus residentes em Barcelona pudessem ter um templo para suas práticas religiosas. Detalhe: A sinagoga e as celebrações de culto deviam ser feitas "sem signos exteriores nem manifestações na via pública."

Em 10 de janeiro de 1946 Bartolomé Barba recebeu uma carta do ministro do Governo, Blas Pérez, informando-lhe que no último Conselho de Ministros presidido pelo chefe do Estado, Francisco Franco, ficou acertado "autorizar a abertura de uma Sinagoga em Barcelona." Quatro dias depois, o governador civil comunicou esta decisão ao chefe superior da Polícia e ao presidente da comunidade judaica de Ciudad Condal.

A vida comunitária dos judeus residentes em Madri desapareceu no início da Guerra Civil Espanhola. A pequena comunidade que permaneceu durante o período da Segunda Guerra Mundial era pouco religiosa. Em fins de 1945, imediatamente depois da guerra, o número de famílias judias não ultrapassava 50, sendo muitas asquenazitas.

Ao final de 1948 os dirigentes Ignacio Bauer, Moisés Lawenda e José Cuby solicitaram autorização para abrir um templo de culto judaico. No anoitecer do domingo, 2 de janeiro de 1949, com um público de 35 judeus, aconteceu a inauguração solene desta sinagoga.

Em 29 de setembro de 1949 chegou à Espanha uma comissão mista de senadores e congressistas dos Estados Unidos, convidados pelo Governo de Franco para conhecer a realidade do país. Entre os congressistas, Abraham Multer, representante de Nova York, se interessou pela situação dos judeus na Espanha. Tanto em Madri como em Barcelona se entrevistou com os presidentes de ambas as comunidades.

Bauer e Enrique Benarroya lhe comunicaram suas preocupações e lhe solicitaram que interviesse por maior liberdade perante o governo espanhol.

Em princípios de fevereiro de 1949 a Espanha pôs em marcha um mecanismo para se aproximar do novo Estado de Israel. Depois de um desalentador primeiro intento em Washington, Daniel François Barukh foi o próximo mensageiro. O então presidente da comunidade judaica de Madri era uma pessoal ideal para os projetos do Ministério de Assuntos Exteriores, devido às suas relações e contatos em Israel.

Barukh escreveu a seu primo Elie Eliachar, destacado dirigente sefardita, deputado da Knesset e durante alguns anos vice-prefeito de Jerusalém, para que transmitisse ao ministro das Relações Exteriores de Israel o seguinte:

1) O Governo da Espanha vê com agrado o êxito de Israel. 2) Está particularmente interessado na amizade e bem-estar dos sefarditas. 3) Se Israel deseja ser reconhecido e cambiar diplomatas, deve enviar um representante. 4) Um contrato comercial seria bem recebido depois de que os Gabinetes econômicos de ambos os países realizem um estudo."

Nesta carta, Barukh adiantava que, se Moshe Sharett enviasse um representante - "preferivelmente sefardita" - com plenas credenciais, teria um êxito imediato. Por indicação de Sharett e do diretor-geral de Política Externa de Israel, Walter Eytán, a carta-resposta de Gershom Hirsh, diretor da Divisão da Europa, diz:

"Depois de muitas consultas e deliberações, o Ministério de Relações Exteriores decidiu recusar por certo tempo o estabelecimento deste tipo de relações. Com toda certeza voltaremos a tratar desta questão dentro de alguns meses."

O caminho seguinte foi articulado através de Paris para Barcelona. José Erice, por mediação de seu amigo Arístides Peña, com ótimas relações com a comunidade judaica de Barcelona, enviou a Benarroya cartas pedindo que intercedesse às autoridades israelenses por um mútuo reconhecimento.

Após muitos entraves políticos, em abril de 1950 no Ministério de Assuntos Exteriores de Israel se elevaram algumas vozes que consideravam benéfica para os judeus da Espanha o reconhecimento mútuo, o que ocorreu plenamente apenas em meados dos anos 80.

Entre 1960 e 1961 o general Franco ordenou à Presidência do Governo espanhol cooperar com o Serviço Secreto de Israel, para favorecer a emigração clandestina dos judeus marroquinos. Isser Harel, chefe do Mossad de 1953 a 1963, confirmou a ajuda.

Com a operação do Mossad, dos 420 mil judeus que em 1960 viviam no Marrocos, no ano seguinte restaram apenas 250 mil, dos quais 30 mil conseguiram emigrar por outros caminhos para Israel e, em menor medida, para França e Espanha.

A fim de facilitar este êxodo, foi criada uma organização clandestina para que das cidades de Ceuta e Melilla os judeus embarcassem com destino a Algeciras, Málaga e Gibraltar, e destes portos, a Israel.

Alguns dos organizadores desta operação vivem hoje em Israel, como José Suiza Chocarem. O agente secreto do Mossad responsável pela operação batizada de Yakhin foi Shmuel Toledano.

A década de 60 é sumamente importante para o desenvolvimento da vida judia na Espanha. O país passou nesse período de um regime de confissionalidade de Estado, exclusivamente católico, a um sistema de maior tolerância com a promulgação da Lei de Liberdade Religiosa de 1967.

Neste mesmo sentido cabe destacar a criação do grupo de Amizade Judaico-Cristã, a celebração do Concílio Vaticano II e a promulgação de Declaração Nostra Aetate.

As comunidades judaicas espanholas receberam o reconhecimento legal por parte das autoridades e seus estatutos foram aceitos. As manifestações e atos de conteúdo sefardita se intensificaram e o Governo concordou em criar nesta mesma década o Museu Sefardita e o Instituto de Estudos Sefarditas.

Graças à liberdade religiosa garantida por lei e ao trabalho bem orquestrado entre as lideranças judias de Madri e Barcelona, novas kehilot se desenvolveram por demais cidades.

Em 1966, os judeus que viviam na Espanha se distribuíam geograficamente da seguinte forma: Barcelona, 3.000; Madri, 2.000; Melilla, 1.500; Ceuta, 400; Málaga, 400; e uns 150 em Valência. Números menores se encontravam ainda em Sevilha, Córdoba, Maiorca, San Sebástian e nas Ilhas Canárias.

Caso muito interessante, semelhante aos marranos do vizinho Portugal, são os chuetas de Maiorca. Tratam-se de descendentes dos judeus que habitavam a ilha no período mourisco. Ainda que obrigados a se converterem ao cristianismo em 1435, continuaram vivendo durante séculos como comunidade criptojudaica, demonstrando como os criptojudeus portugueses uma capacidade singular de sobrevivência.

Durante a Segunda Guerra Mundial, exatamente no ano de 1942, por solicitação dos agentes da Gestapo instalados na ilha, a polícia espanhola iniciou uma investigação sobre a situação e número de descendentes dos judeus conversos, sob o pretexto de indagar uma possível conexão entre os chuetas e representantes de organizações judaicas.

A investigação se concentrou em dados históricos sobre a identidade familiar das pessoas condenadas pela Inquisição e foi pedida a um historiador local indicado pelo arcebispo de Maiorca.

Este historiador informou aos investigadores espanhóis e alemães que 35% dos habitantes da ilha eram descendentes de judeus ou de pessoas acusadas de judaizantes pela Inquisição. Esta cifra, todavia, parece ser muito elevada. O mais realista seria 18%. Segundo fontes consultadas, o número fora duplicado para confundir os nazistas.

O ano de 1992 foi decisivo para a aproximação entre a Espanha, os judeus de todo o mundo e o Estado de Israel. A data lembrou os 500 anos do Decreto de Expulsão dos reis de Castela e Aragão, Isabela e Fernando, mas principalmente foi um marco de revisão histórica, de mea culpa pública do rei Juan Carlos em nome da Espanha passada e do nascimento de um novo entendimento.

Que a lição de aproximação de 1992 entre judeus e espanhóis inspire outros povos a buscar a paz mútua, que inspire israelenses e árabes, espanhóis e bascos.

Nota: Conferência proferida no Teatro Arthur Rubinstein, da Hebraica-SP, durante evento "Sefarad, la España Judía", promovido pelos consulados da Espanha e de Israel.

Fonte: Revista Judaica - nº 13/maio 1998

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