quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Judeus na Amazônia: 200 anos de muitas Histórias Pitorescas

MARTINS BRUZUGÚ E O FIM DO MUNDO 
Da Série Histórias da "Vidinha" e de Bôca do Acre, a Macondo dos Elmaleh/Salgado 
Por Elias Salgado


Não é raro se ouvir que o povo judeu é um dos mais intrigantes e singulares povos da História. As razões são diversas: a sua longevidade, as características ímpares de sua configuração cultural, religiosa, nacional e geográfica; as adversidades que lhes foram impostas.

Concordo. Com alguns dados históricos e narrando um dos inúmeros causos vividos por minha família, os Elmaleh/Salgado, farei um breve e parcial relato da saga dos judeus marroquinos da Amazônia.

Minha família chegou à Amazônia no que a historiografia registra como a primeira onda imigratória de judeus para aquela região, iniciada em torno do ano de 1810. Foram cerca de mil famílias, em sua quase totalidade, oriundas do Marrocos, de lá escapando da fome, da miséria, das epidemias e das perseguições sofridas nos melahs , bairros judeus nos quais estavam confinadas.

Além disso, alguns fatores de atração foram decisivos para a escolha do momento e do destino de tal imigração: a abertura dos portos às nações amigas (1808), os tratados de comércio e navegação e de aliança e amizade entre Portugal e Inglaterra (1810) e a consequente liberalização dos cultos não católicos.

Muito contribuíram, também, a criação de escolas da Aliança Israelita Universal no Marrocos, que gabaritava jovens judeus adolescentes com cursos profissionalizantes e uma visão de modernidade, e o início do Ciclo da Borracha, o que os motivou a partir em busca de fortuna e um destino mais promissor.

Passados 200 anos, o legado deixado por aqueles pioneiros é vasto: uma comunidade em Belém com cerca de 400 famílias, em Manaus com cerca de 250, Rondônia e Macapá e outras localidades do interior somando mais algumas dezenas. Para o sudeste (Rio e São Paulo) migraram outras dezenas, e em Israel já são mais de 300 descendentes. Há também o caso peculiar dos chamados “hebraicos da Amazônia”, na verdade descendentes de relacionamentos interétnicos daqueles imigrantes, que  alguns pesquisadores dizem totalizar  mais de  50 mil pessoas, havendo  quem afirme que podem chegar a mais de 250 mil!

Se são mil famílias, certamente serão dezenas de milhares de histórias, causos e experiências no seu encontro com o Outro. Minha mãe consegue lembrar-se com riqueza de detalhes de fatos ocorridos em sua mocidade, há mais de 60 anos. Ela é uma verdadeira mina de ouro para a minha escrita, e eu me transformei em seu ghostwriter. Boca do Acre, onde nasci, é minha Macondo, e espero conseguir eternizá-la com um mínimo do requinte literário  do maravilhoso García Marquez. Ousadia? Mas li em algum lugar que é preciso pensar grande... Da série que eu denomino “As histórias da Vidinha”, selecionei a que segue.


Vista aérea de Bôca do Acre
 Martins era uma daquelas figuras incomuns da fauna de personagens que habitavam a pequena Boca do Acre. Funcionário público, trabalhava como tratorista. Mas o que o tornava uma figura singular não era o seu trabalho, e sim o seu incurável temor por almas, espíritos e coisas ditas sobrenaturais; e outras até naturais, como a morte. Quando alguém morria na cidade, podia até ser muito querido ou da família, Martins Bruzugú jamais ia a velórios ou enterros. Acometido de enorme temor, desaparecia mata adentro rumo aos seringais e ali permanecia, por vários dias, completamente isolado, até  que o morto estivesse bem morto e enterrado muitos e muitos palmos abaixo da terra; e sua alma bem distante de Boca do Acre e deste mundo.

Quando o caboclo Martins Bruzugú e sua mulher, a franzina Tereza, se mudaram para Rio Branco, Boca do Acre  ficou tristemente saudosa. Porém, mamãe e papai, que sempre que podiam ou necessitavam subiam o rio Acre no Estrela rumo a Rio Branco, tinham a sorte de poder rever nessas oportunidades, o velho amigo Martins e se hospedar em sua nova casa.

Numa dessas inúmeras viagens, a estadia não seria  como as outras...  Eram os idos de 1960, e corria solta, ao menos naquela parte do planeta, a notícia  de que o mundo em breve iria acabar...  Primeiro haveria uma escuridão total e em seguida o fim de tudo.

Ansiosos por chegar a Rio Branco, papai e mamãe faziam  planos de como aproveitar seu tempo livre na cidade, os belos passeios e as boas compras que fariam, e como seria agradável e divertido rever o velho amigo Martins Bruguzu.

E assim, dois dias rio acima, finalmente o Estrela atracou no cais de Rio Branco. Papai e mamãe seguiram direto para a casa de seus amigos.  Tereza, no jardim, recebeu-os  com seu doce sorriso:
- Oi gente! Que bom que vocês chegaram. Vamos entrando. Fizeram boa viagem?

- Maravilhosa! Mas é sempre bom chegar, não é? E vocês, como têm passado?

- Bem, “Vidinha”

- Cadê o velho Bruzugú aquele caboclo danado?

- Ele tá fora, Seu David. Foi à cidade fazer umas compras. Mas logo, logo ele vai chegar. E o doce sorriso de boas vindas deu lugar a uma expressão de tensão.  Mamãe, que  conhecia aquela expressão de longa data, perguntou:

- Está acontecendo alguma coisa, Tereza?  Eu conheço essa tua cara.

- Pois é... É essa história maluca de fim do mundo. O Martins tem me deixado alucinada com isso... Venham, vou lhes mostrar uma coisa.

E os levou à dispensa,  nos fundos da casa. Quando abriu a porta, papai e mamãe puderam ver dezenas, quiçá centenas de caixas de velas.

- Puxa! O caboclo Martins tá comerciando com velas agora?

- Nada disso, Seu David, antes fosse. Ele está é arruinando com nossas economias, comprando caixas e mais caixas de velas todo santo dia e entupindo a dispensa com elas.

- Mas para quê tanta vela, Tereza? Se não é para revender, então o Martins pirou de vez!

- Pois é, Vidinha, dessa vez o meu velho passou das contas e virou motivo de gozação pra toda a gente da cidade.

- Tereza, oh! Tereza, cadê você, muié? Vem cá me ajudar.

Era Martins Bruzugú a gritar no portão. Foram  os três ao seu encontro.

- Oi gente! Vocês já chegaram? Que bom. E continuou a descarregar a Rural Willys, que estava com a carroceria abarrotada de caixas de velas.

- Ei, caboclo! Deixa eu te ajudar com isso.

- Não precisa não, David, vocês devem estar cansados da viagem. Deixa que a Tereza me ajuda com isso. Ela já está acostumada...

Meia hora depois, Martins  veio ao encontro de meus pais no jardim:

- E aquele motorzão, o Estrela, se comportou bem como sempre, David? Olha,  Vidinha, a Tereza deixou um quarto bem arrumadinho pra vocês e agora tá lá na cozinha  acabando  de preparar o nosso almoço . Comprei um baita tracajá pra comemorar a chegada de vocês. Enquanto isso,  vou colocando a conversa em dia aqui com meu velho amigo David , o rei de Boca do Acre. E riu desbragadamente, como costumava fazer quando estava alegre.

- E aí, David? Você continua cada vez mais rico, não é?

- Vocês é que pensam. Eu mesmo não sei onde está todo esse dinheiro que todo mundo diz que eu tenho. Só sei que trabalho muito e tenho muitas despesas. As coisas não são tão fáceis como se pensa.

Era meu pai e seu velho discurso sobre como a vida é dura e que o dinheiro não cai do céu...

- Deixa disso, David! Você sempre escondendo o jogo, como um bom judeu... E a política? Você tá pensando em sair candidato a prefeito de novo?

- Não sei, não, Martins. Ainda estou avaliando se vale a pena, mas acho que não. Depois de toda aquela despesa de campanha da última eleição e toda aquela guerra política que foi... Não que eu tenha medo daqueles bandidos dos irmãos Correia, que aquele desgraçado do Adelino  mandou  pra me matar. Isso não! Que eu sou muito homem e sei bem me defender! É que é muita despesa e dor de cabeça. Vou seguir tocando meus negócios. Eles já me dão trabalho suficiente. Mas me conta de você, pois eu tô vendo que,  pra variar, você tá querendo me enrolar. Que loucura é essa de comprar tanta vela, Martins?

- Ah, David! Estão dizendo que o mundo vai acabar em pouco tempo; e que primeiro vai haver uma grande escuridão e pronto! O fim de tudo! Como eu não quero morrer no escuro, resolvi me prevenir comprando velas... Só falta  mandar benzer. Amanhã vou passar lá na igreja de novo e trazer o danado do padre nem que seja à força, que Deus e Nossa Senhora me perdoem por falar assim. E dizendo isso começou a se benzer.

- Deixa disso, homem, para de ser cagão! Você não vê que isso é história pra boi dormir; coisa de quem não tem o que fazer na vida...

- Eu sei que é verdade. Muita gente tá falando nisso. Gente séria, que sabe das coisas. Vem cá, deixa eu te mostrar  outra coisa que  vou fazer pra me prevenir.

Martins levou papai até o interior da casa e falou com riqueza de detalhes acerca da passarela de cimento que  faria para acender sobre ela as velas, de forma que  não viessem a queimar o piso e a casa, que eram de madeira.

- A passarela vai começar no meu quarto, passar pela sala até o portão. Assim estarei seguro.

O cozido de tracajá estava farto e saboroso. Naquela noite, o jantar foi um leve lanche com quitutes locais: bolo de aipim, tapioca, suco de cupuaçu e frutas da região: pupunha, tucumã, manga, graviola.

Na manhã seguinte, quando papai e mamãe acordaram,  Martins já havia saído na Rural. Voltou cerca de duas horas depois com o carro carregado de mais caixas de vela e agora também de sacos de cimento para construir a  “passarela da salvação”, como ele mesmo cognominou o seu projeto de engenharia.

Mas as crônicas da época registram que o pobre Martins não conseguiu terminar sua grande obra. No terceiro dia de estadia de meus pais em sua casa, os seus maiores temores tornaram-se realidade: ao fim da tarde, o céu azul de Rio Branco foi se tornando soturno e em minutos uma escuridão abismal tomou conta da cidade. O caboclo Martins Bruzugú,  apossado pelo desespero, começou seu ritual de acendimento das velas. E de forma alucinada pôs-se de joelhos a rezar e a implorar pela sua salvação:

- Valei-me, minha Nossa Senhora da Misericórdia, é o fim do mundo mesmo! Salvai-me, ó Senhor!

Meu pai, sempre crente em seu Deus e descrente de todas aquelas histórias e temores  sobre o  fim do mundo, tentava em vão acalmar o amigo:

- Deixa disso, rapaz. Tereza, não tem nada aí na cozinha pra ele se acalmar?

Mas quem disse que ele se acalmava. Seguia acendendo velas e mais velas e a clamar aos céus por sua redenção.

- Mas Tereza, será que esse caboclo não vê que isso tudo é prenúncio de... Papai não conseguiu completar a frase. Um temporal  típico da floresta tropical desabou sobre eles. Momentos depois, assim como começou, a chuva parou – abruptamente – e um esplendoroso sol clareou o céu naquele fim de tarde.

- É, Martins, ainda não foi desta vez -  ironizou meu pai.

- Mas foi por pouco...


2 comentários:

  1. Eli Hermano, que pasada por los tiempos que eran otros los tempos de la vida! Una de las bellas historias de familia con gente de conviciones por esos lares del mundo..
    Yeshua

    ResponderExcluir